Vemos nas últimas décadas a emergência de experiências de tempo integral que extrapolam o processo de escolarização centrado no espaço da escola, fazendo emergir outros espaços da cidade como potencialmente educativos.

Assim, a escola e os professores incorporam em sua organização os elementos significativos da experiência dos alunos, os quais vistos como sujeitos portadores de cultura. Levar em consideração a subjetividade dos alunos e suas identidades é central para empreender esse movimento de ruptura do isolamento da escola de seu entorno, pois não são alunos quaisquer, e sim alunos com uma história específica de uma comunidade específica.

Essa concepção de educação integral como educabilidade integral exige, portanto, uma articulação das políticas públicas que pressuponha outro olhar sobre as articulações entre educação e cidade.

É disto que trata esse módulo. Vejamos alguns princípios que orientam essa (re)articulação e seus impactos para o cotidiano escolar.

Como pensar a relação entre a cidade e a educação?

Imediatamente podemos fazer referência ao sistema escolar do município e sua organização. Assim, nos dedicaríamos a pensar o número de escolas, a cobertura existente, as relações de ensino e de aprendizagem, aos índices de avaliação, etc.

Podemos também pensar essa relação a partir de como os habitantes de um município cuidam de sua cidade, de suas ruas e dos espaços comuns. Assim, poderíamos averiguar, por exemplo, se há lixeiras públicas e se elas são usadas.

Essas duas dimensões, apesar de tentarem apreender o que seja a educação num determinado contexto, possuem duas visões bem distintas entre si: na primeira, a educação é enfaticamente escolar; ao passo que, na segunda, a educação é sinônima de boas maneiras.

Não que esses dois fatores não se relacionem. O importante é pensarmos em que contexto essas relações são estabelecidas e qual projeto político costura essas duas dimensões.

Um exemplo disso pode ser tirado de nossa história recente. Entre os anos de 1964 e 1984, o Brasil teve vários governos militares e um deles, o de Emilio Garrastazu Médici, lançou uma campanha publicitária cujo mote era “Povo desenvolvido é povo limpo”. Eram tempos difíceis para a democracia. Governava-se através de Atos Institucionais, em que as questões nacionais não eram discutidas, e com forte restrição à participação popular. Foi tempo também do milagre econômico e de projetos faraônicos, enquanto o povo permanecia no analfabetismo e na pobreza.

Mas havia um projeto político de educação do povo e a campanha “Povo desenvolvido é povo limpo” nos dá pista dessa relação entre educação e os territórios.

E é aí que está o “X” da questão: interessa à educação uma relação apenas formal entre escolarização e ocupação da cidade? Interessa pensar que a relação entre educação e cidade é apenas manter os meninos na escola, para que eles tratem bem a cidade e ela fique limpa? A quem interessa educar e limpar a cidade?

Essas perguntas nos exigem pensar qual o sentido político da educação, tanto em seu sentido mais geral, como mediação social e apropriação dos espaços públicos, quanto em seu sentido mais específico de projeto educacional para as escolas e a que fim se destina a educação dos estudantes.

Dizer que “Povo desenvolvido é povo limpo”, em um contexto de restrição da participação política, é empobrecer as dimensões educativas da cidade e da escola. Os vínculos educacionais cidade-escola tornam-se frágeis e não se potencializam mutuamente. E como já percebemos em nosso curso, a nossa intenção é reforçar essas dimensões e tornar a escola e a cidade espaços de mediação educacional para todos que ali moram e compartilham das mesmas experiências e, em especial, as crianças, adolescentes, jovens e adultos estudantes. Esse é o sentido que se atribui às práticas educativas que incorporam a cidade e seus territórios como espaços de conhecimento e aprendizagem da cidadania. O que pressupõe a experiência democrática ausente nos períodos de autoritarismo e de repressão política.

Flashes de viagem

O lema “Povo desenvolvido é povo limpo” acompanhava uma série de inserções publicitárias no governo do General Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974). Os filmes eram pequenos desenhos animados em que o personagem “Sujismundo” ia emporcalhado todos os lugares em que passava. Eram filmes destinados à educação da população para o bem comum. Foram criados pelo animador e quadrinista Ruy Perottie e permaneceu no ar entre 1971 e 1972. Vejam alguns desses filminhos nos links abaixo:

 

 

Flashes de viagem

Nas manifestações de junho de 2013 vimos um desejo de mudanças em diversas áreas, por grande parte da população. Dentre essas mudanças está a reestruturação dos transportes públicos urbanos e o direito à cidade. A luta por essas mudanças é articulada principalmente pelo Movimento Passe Livre (MPL), um movimento social autônomo, integrado principalmente por jovens, que a partir da luta pelo Passe Livre Estudantil e a melhoria das condições dos transportes, elaborou sofisticadas noções de mobilidade urbana, segregação espacial e segregação racial, que compõem sua visão de direito à cidade. Para o MPL, a cidade não se constitui apenas de serviços; a mobilidade refere-se também a qualquer deslocamento cujo objetivo seja afetivo, lúdico, de puro lazer. É, além disso, meio de acesso a direitos já consagrados como ‘do cidadão’ (saúde, educação, etc.).  Assim, nas metrópoles contemporâneas, o transporte adquire uma centralidade que o leva à condição de meio de acesso ao direito à cidade.

Para saber um pouco mais sobre os propósitos do MPL, assista ao vídeo com a entrevista realizada com dois militantes do MPL no Programa Roda Viva da TV Cultura:

Falar de educação integral no contexto das cidades educadoras exige uma confluência de olhares sobre o pedagógico e o social, em que o denominador comum é o campo das políticas educacionais, isto é, deve-se pensar a escola e pensar a sociedade, para pensar a educação. Esse movimento está pressuposto na idéia de cidadania e na ampliação do direito à educação. Percorrendo esse veio, a luta por uma educação de tempo integral se instaurou no Brasil.

Toda a luta social que se inicia na década de 1980, através da iniciativa dos movimentos sociais e educacionais foi pela democratização da gestão da escola, pela ampliação de sua cobertura, para a qualidade na oferta e no atendimento de crianças, adolescentes, jovens e adultos que nela ingressam.

São várias as mudanças ocorridas nesses anos por uma educação de qualidade:

  • Ampliação do número de vagas e diversificação na oferta em níveis e modalidades mais próximas e circunstanciadas a determinados recortes específicos dessa população (Educação Infantil, Ensino Fundamental E Médio, Educação De Jovens E Adultos, Educação Indígena, Educação Profissional);
  • Inclusão de pessoas com deficiência e ampliação dos espaços de inserção de todos na escola regular, na compreensão de que o direito à educação exige a superação de preconceitos arraigados na sociedade brasileira (racismo, sexismo, misoginia e homofobia);
  • Consolidação da gestão democrática da escola pública com a criação de instâncias mediadoras de participação e de decisão das camadas populacionais atendidas no entorno escolar (eleições diretas e democráticas para diretores, assembleias e colegiados escolares);
  • Criação de políticas entre vários setores da gestão pública na consolidação de uma rede social para a promoção da permanência dos alunos com histórico de fracasso escolar (programas de geração de renda associados à escolarização infanto-juvenil, re-inserção de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade pessoal ou social na escola, ações de organizações não governamentais ou estatais para o combate à marginalização juvenil e de valorização de sua autoestima);
  • Implementação de políticas educacionais de reordenamento da organização escolar na busca de superação do fracasso e da cultura da repetência (os ciclos de formação, a reclassificação e os programas de aceleração de aprendizagem).

Podemos perceber que a idéia de ampliar as dimensões escolares acompanha esse movimento de qualificação da escola em sua dinâmica interna de organização. Mas também aqui atuam outros fatores extraescolares a exigirem alterações na escola.

No diagrama a seguir, segue um panorama desses fatores e seus intercruzamentos:

As letras A, B, C e D representam questões contemporâneas que atravessam não apenas os grandes acontecimentos, mas o nosso cotidiano, o de nossas cidades e o de nossas escolas.

A letra A, globalização, indica não apenas os aspectos econômicos em curso nos quais empresas se agigantam na exploração de um mercado que não tem fronteiras para as grandes corporações que se disseminam em todo o mundo — inclusive em sua cidade. Olhe a sua volta, com certeza há marcas internacionais encontradas aí na sala em que você se encontra. Globalização também indica a intensa circulação de bens culturais e simbólicos usados por nós para nos identificarmos socialmente e que, por exemplo, nos faz solidarizar com mulheres iranianas condenadas à morte, por terem tido relações extraconjugais.

A letra B, novos movimentos sociais, aponta que a dimensão do direito à participação se vê em questão por novos movimentos sociais de cunho ecológico, étnico-racial, gênero e sexualidade, origem e outros tantos mais que recusam uma sociedade unidimensional e lutam pelo pluralismo no campo das idéias e pelo reconhecimento da diferença. Eles também estão perto de você, quando se discute, por exemplo, a regulamentação da posse da terra de comunidades do campo como quilombolas, assentados, atingidos por barragem e indígenas. Não esqueçamos que as migrações, o desequilíbrio ecológico e os inchaços das médias e grandes cidades é uma das variáveis de uma sociedade que concentra a terra para o agronegócio.

A letra C, sociedade pós-industrial, reflete que não vivemos mais numa sociedade industrial nos moldes como a que conhecemos e que serviu de locomotiva para o desenvolvimento dinamizador da atração das populações do campo para as cidades. A oferta de emprego, hoje em dia, encontra-se mais pujante na área de serviços. O que cria demandas de qualificação para os trabalhadores mesmo que não haja, de fato, vagas para todos e que a distribuição dessas vagas se veem atravessadas por mecanismos seletivos que combinam mecanismos escolares e extraescolares

A letra D, inovações tecnológicas e comunicacionais, é uma das dimensões mais palpável dos apontados anteriormente e cujos impactos são mais incorporados em nosso cotidiano. O simples fato de você estar agora na frente de um computador fazendo um curso de capacitação a distância é uma pequena amostra disso que estamos dizendo. São muitos exemplos, como telefones celulares, computadores, internet, televisores cada vez mais sofisticados, enfim, uma quantidade imensa de objetos disponibilizados em lojas ou sites de compra em muitas prestações a serem pagas.

Sentimos como essas novas configurações globais afetam o nosso cotidiano e cujas consequências vêm a se somar a problemas já consagrados e que se se tornam complexos nos novos tempos globalizados: tráfico de humanos para o trabalho e/ou exploração sexual, para a venda de órgãos ou simplesmente em rotas migratórios para escapar da fome ou da guerra; tráfico de armas, de drogas ou de produtos falsificados; aliciamento de menores explorados sexualmente e outras tantas questões.

E são rotas que conectam o local com o global, por meio de redes informacionais capilares capazes de conectar on-line mundos tão diferentes. Mas também há positividades anunciadas e exigidas pelos movimentos sociais e por todos que se preocupam em inverter os sentidos negativos dessas experiências desumanizadoras e que se utilizam dessas redes para promoção da vida.

Flashes de viagem

Os “rolezinhos”, encontros marcados por jovens das periferias de São Paulo nos shoppings da capital paulista foram duramente reprimidos e geraram grande impacto nas grandes cidades. Desde então, esses acontecimentos geraram um debate “caloroso” que explicitou posições distintas e opostas sobre a questão dos jovens negros e pobres na sociedade brasileira e a ocupação dos espaços nas cidades. Convidamos vocês a assistirem ao vídeo (6:42min) reportagem da Veja São Paulo onde é mostrada a posição dos jovens participantes e promotores dos rolezinhos. O interesse deste vídeo é o encontro com jovens em seus locais de moradia para escutar o que pensam e cenas dos rolezinhos e de sua repressão pela polícia militar de São Paulo:

A escola é estratégica nessa empreitada, principalmente por ser alvo dos impactos trazidos pelas inovações em curso.

Assistimos, nas últimas décadas, a novas conformações sociais que impactaram profundamente as formas tradicionais de organização da escola, do conhecimento e das próprias mediações educacionais inerentes ao processo de socialização dos indivíduos.

  • Insurgência e incorporação de novas tecnologias na produção, na organização e na socialização de conhecimentos acessíveis às crianças e aos jovens — vídeos-game, jogos on-line, lan house, sites de busca, etc. O que impacta diretamente a organização escolar por questionar a lógica de que apenas os adultos são os detentores do conhecimento que ensinam às crianças com nenhuma informação prévia à escola;
  • Emersão de novas demandas educacionais articuladas na esfera pública por aqueles que tradicionalmente não têm acesso à rede social de proteção a ser garantida pelo Estado aos cidadãos: sem-teto, sem-terra, populações de rua, assentados, imigrantes, quilombolas, indígenas. Esses sujeitos não querem apenas vagas nas escolas, mas uma escola que reconheça sua cultura, seus saberes e suas práticas sociais dispersas socialmente;
  • Intensificação do entrelaçamento entre o “local” e o “global”, em que diferentes culturas se interpenetram e relativizam o nosso olhar sobre o mundo ao nosso redor. Podemos criar e postar vídeos, textos, música, enfim, uma infinidade de possibilidades em que cada um pode se tornar produtor, além de consumidor cultural numa outra dinâmica não ensejada pela escola;
  • Inserção ainda maior das mídias no cotidiano que encurtam as distâncias e fazem com que possamos nos inserir em comunidades globais instantaneamente. As relações face a face passam a ser mediadas tecnologicamente ou mesmo convenientemente embaralhadas em redes de relacionamento que relativizam a capacidade da escola de propor um referencial universal de conduta ética frente à diversidade de experiências virtuais e de seus potenciais riscos reais;
  • Constituição, no mundo público, de recortes geracionais específicos, em que ser criança e jovem ganham autonomia e relevância frente ao mundo dos adultos. A escola e suas prescrições são vistas como limitadoras dessas expressões subjetivas que, muitas vezes, veem essas manifestações como indisciplina, enquanto esses sujeitos buscam reconhecimento de sua cultura com suas roupas, piercings, tatuagens, etc.

O que se desenha, enfim, é um mundo em profundas transformações, no qual as características citadas podem se conectar em relações intrínsecas. Assim, jovens negros, por exemplo, podem viver em uma cidade média e participarem de comunidades no Orkut que divulgam o hip-hop em que se trocam músicas nos computadores de uma lan house e, simultaneamente, frequentar um grupo de capoeira local com uma camisa de Che Guevara ou tocar tambor no congado da comunidade em que vive.

Claro que esse exemplo é imaginário, mas pode ser que ocorra, graças às novas configurações sociais que, de alguma maneira, entram dentro da escola e a desestabilizam.

O que importa apreender é que, nesse exemplo, se materializa uma realidade que até pouco tempo não seria possível e que impõe novas demandas à escola, por se alterarem as exigências da vida cidadã. E o que é fundamental reter é que são prerrogativas tradicionalmente associadas à escola e que são suscitadas por esse movimento de pluralização das vivências sociais.

Nesse sentido, a escola tem que se abrir a essas novas exigências educacionais, em que a política educacional adquire novas cores e expressões, muitas vezes estranhas a uma dinâmica escolar mais restrita de ater-se apenas a currículo, didática, avaliação ou processo de ensino e de aprendizagem, descolado do seu entorno e das vivências socioculturais dos sujeitos que ali vivem, moram e se relacionam entre si e com o mundo.

Se, em uma dada perspectiva, o fim social da escola é transmitir os “conteúdos-histórico-socialmente-relevantes”, agora, numa perspectiva mais plural, caberá à escola diversificar e ampliar não apenas os conteúdos ou as formas de avaliação ou de ensino, mas recontextualizar os espaços e os tempos formativos, tendo em vista os sujeitos e suas práticas sociais. O que poderia ser, no primeiro contexto, políticas acessórias ao fim último da transmissão como as políticas de custeio da merenda, do transporte e do livro didático, torna-se, no segundo contexto, políticas educacionais relevantes em si e que podem acarretar processos significativos de aprendizagem, ao promover uma articulação em rede de distintos equipamentos na educação de crianças, de adolescentes, de jovens e de adultos.

Não devemos, entretanto, assumirmos uma posição dicotômica de que uma situação desfaz a outra ou a supere. Devemos tratá-las como dinâmicas que se interpenetram. O que torna o desafio ainda mais significativo, em que tanto os conhecimentos já consagrados como relevantes são convocados, como novos saberes e práticas sociais circulam a partir do posicionamento subjetivo de novos atores sociais que invadem a cena pública.

A escola se abre, portanto, para o seu entorno local, que se torna espaço educativo mais amplo e a cidade se vê como educativa para todos os que nela vivem e, em especial, aos que se encontram inseridos em processos formais de educação como estudantes nas escolas públicas. Vale a pena lembrar, entretanto, que o local está atravessado por lógicas nacionais e globais que interferem diretamente no entorno vivido. O desafio é humanizar as relações locais em suas distintas conexões e, para isso, várias cidades no mundo se uniram com o intuito de intervir no local, sem perder de vista essas relações com a criação da Associação Internacional das Cidades Educadoras.

Ultrapassando fronteiras

Em 1990, iniciou-se um movimento internacional de várias cidades do mundo que se associaram, a fim de propor políticas urbanas para que as cidades se tornem mais humanas e melhorem a qualidade de vida de seus habitantes.

Organizou-se a Associação Internacional das Cidades Educadoras que, em outros encontros, lançou uma Carta das Cidades Educadoras com objetivos educacionais para os governos e para as populações residentes.

Os desafios ali propostos são:

  • “investir” na educação de cada pessoa, de maneira a que essa seja cada vez mais capaz de exprimir, de afirmar e de desenvolver o seu potencial humano, assim como a sua singularidade, a sua criatividade e a sua responsabilidade;
  • promover as condições de plena igualdade, para que todos possam sentir-se respeitados e serem respeitadores, capazes de diálogo; e
  • conjugar todos os fatores possíveis para que se possa construir, cidade a cidade, uma verdadeira sociedade do conhecimento sem exclusões, para a qual é preciso providenciar, entre outros, o acesso fácil de toda a população às tecnologias da informação e das comunicações que permitam o seu desenvolvimento.

Podemos observar que tradição e inovação tecnológica andam juntas e que velhos e novos direitos se somam para caracterizar a educação, tanto para a autonomia do indivíduo e sua inserção qualificada no mundo social, quanto para reforço dos laços sociais de coesão social em que a exclusão seja atenuada por políticas específicas de inclusão social.

A Carta das Cidades Educadoras está disponível na integra aqui

Olhe a seu redor e busque identificar essas conexões entre o local e o global. Às vezes não estão tão evidentes essas relações, mas se você se esforçar, pode ser que encontre movimentos de circulação de saberes e pessoas em que elementos locais se articulam e se inserem em dinâmicas globais.

Cidades educadoras exigem ampliação dos focos em que tradicionalmente as políticas públicas centram suas ações. As políticas educacionais mantidas pelas secretarias municipais, por exemplo, têm que se voltar não apenas para os que se encontram inseridos nas escolas do sistema municipal de ensino. Inclusive porque a escola não pode ser vista como uma ilha de conhecimento cercada por um mar de saberes e práticas sociais a serem ignorados.

Aqui a rua, os espaços sociais de convivência e de mobilização social, as comunidades locais e as tradições aglutinadoras de participação social são também espaços potencialmente educativos. Como também o são os novos espaços de convivência como as lan houses, as pracinhas e os agitos culturais juvenis. Cabe à escola dialogar com esses espaços e cabe às políticas educacionais incentivarem esses diálogos educativos frente às possibilidades e às representações desumanizadoras que os espaços públicos carregam.

É necessário olhar o urbano que nos cerca. Quais as potencialidades que nossas cidades guardam em se tornar educadoras? Quais os territórios aí existentes que potencializam dinâmicas educativas?

Vamos conhecer a cidade que moramos? Conhecer suas dimensões educativas?

Metrópole, interior, centro, bairro, periferia, favela, morro, subúrbio, vila, condomínio, aglomerado, roça, comunidade, gueto. Jovens, adolescentes, trabalhadores, estudantes, favelados, tribos, crianças, manos, minas, velhos, adultos. Todas essas palavras identificam lugares e sujeitos que são hoje alvo de várias pesquisas e ações políticas. Essa pluralidade de nomes/conceitos indica uma multiplicidade de maneiras de apreensão da dinâmica das cidades focalizada nos espaços, nas práticas, nas sociabilidades, nas vivências e nas representações de seus moradores.

O espaço é, antes de tudo, produto de uma cultura, na medida em que não há um "mundo natural", ou seja, os diferentes espaços da nossa cidade são produtos das relações humanas, fruto dos fenômenos culturais e sociais. Em outras palavras, o espaço é produto das esferas econômica, política, social, cultural e ideológica.

São os atores sociais que transformam os espaços físicos em lugar, por meio da produção de estilos com estruturas particulares de significados, os quais envolvem memória, sentimento de pertença e afirmação coletiva. O espaço (lugar) é condição necessária para a construção de identidades grupais e individuais com e na cidade. Nesse sentido, o espaço público possui uma dimensão socializadora para muitos cidadãos que se apropriam dele para encontros, interações afetivas ou mesmo como palco para a expressão da cultura que elaboram. Dessa forma, muitos sujeitos colocam na cena pública marcas identitárias e saberes sobre a cidade, às vezes considerados marginais ou ilegais. Ao mesmo tempo, as ressignificações nos usos dos espaços e dos equipamentos públicos configuram relações de proximidade e de distância entre os sujeitos, possibilitando competições entre grupos sociais que podem levar a novas segregações do espaço citadino.

O Brasil é um país com uma rede urbana extremamente complexa e diversificada, com cidades das mais diferentes escalas populacionais. No entanto, as diferentes regiões - metropolitanas, cidades médias ou rurais - muitas vezes podem ficar a mercê das políticas localistas, as quais insistem em não reconhecer a dinâmica dos seus cidadãos em lugares da cidade. É preciso compreender as práticas sociais para integrar as políticas públicas. Os circuitos culturais da juventude são um exemplo da apropriação de espaços metropolitanos. Mas esse fluxo não se faz sem conflitos e sem batalhas. O custo do transporte, ou a ausência dele; a concentração dos equipamentos culturais e de lazer; os territórios proibidos, sejam os da riqueza, sejam os da pobreza; tudo isso evidencia outras fronteiras.

Flashes de viagem

Veja também a roda de conversa “O espaço na Educação Integral” em que professores do TEIA da FaE-UFMG, refletem sobre os limites e possibilidades dos espaços educativos.

Explorando territórios

Vamos localizar as diversas dimensões da cidade: da cultura, do lazer, do acesso aos espaços públicos, do direito de ir e vir, do direito à vida, enfim, dos direitos civis clássicos aos novos direitos. Pretendemos, portanto, refletir sobre as possibilidades de gestão democrática e participativa da cidade, conjecturadas em experiências concretas.

Quais as dimensões de sua cidade, do seu bairro, da sua rua, do entorno da sua escola? Atente o olhar, percorra o que cotidianamente é visto e descreva o que há de educativo ao seu redor.

Seguindo trilhas

Às vezes, o tradicional, aquilo que vemos cotidianamente e que, por isso, se torna invisível para nós, guarda dimensões educativas por nós desconhecidas. Por isso, é necessário apurar o olhar, ver o que se encontra ao nosso redor.

É assim no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. O local recentemente ocupado pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) para a instalação de uma Unidade de Policia Pacificadora (UPP)é recorrentemente  associado à pobreza e à marginalidade nas nossas representações sobre a favela. Mas a Maré tem outras faces muitas vezes invisíveis para mídia, para os moradores de outros bairros e até para os seus próprios moradores.

A Maré tem em torno de 132 000 moradores e é um dos maiores adensamentos urbanos da cidade do Rio. E é lá que acontece a Feira da Teixeira, um dos locais de encontro e de socialização das pessoas que ali moram. A feira tem esse nome porque fica na Rua Teixeira Ribeiro no bairro Parque Maré.

Mas no dia da feira, sábado, espaços, lugares e tempos são apropriados não apenas pelos vendedores e compradores que se encontram para estabelecer relações comerciais. Ali, jovens, crianças, adultos, homens, mulheres se encontram e estabelecem relações. Reconhecem-se como sujeitos de suas práticas sociais e como cidadãos, como alguém que vive numa cidade e nela circula ao estabelecer o acesso a seus bens materiais e simbólicos. Como nos diz Fernando Pessoa, poeta português, no poema “Chuva Oblíqua”:

E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal (...)
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,
E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar (...)
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol.

Fernando Pessoa

Flashes de viagem

Mas há cidades dentro da cidade, há tensões entre ser da favela e não-ser da favela. Há marcas elaboradas pela cidade legal e que identificam os moradores como favelados e contramarcas identitárias elaboradas pelos moradores para ressignificarem sua trajetória e sua inserção social. Há, ainda,as marcas migratórias e as histórias de cada um no interior da mobilidade urbana. E tudo isso se faz sentir na Feira da Teixeira, na rua, entre compras e encontros dos moradores. É como um dos depoentes diz: “a feira é de utilidade pública” em vídeo intitulado “Feira da Teixeira”, produzido pela Escola de Comunicação Crítica do Observatório de Favelas.

Veja o vídeo, perceba a diversidade de pessoas, locais, atividades, interesses que circulam na Teixeira e a faz ser mais do que uma rua e mais do que um comércio:

Seguindo trilhas

O Observatório de Favelas

O Observatório de Favelas é uma organização social de pesquisa, de consultoria e de ação pública dedicada à produção do conhecimento e de proposições políticas sobre as favelas e fenômenos urbanos. O Observatório busca afirmar uma agenda de Direitos à Cidade, fundamentada na ressignificação das favelas, também no âmbito das políticas públicas.

Criado em 2001, o Observatório de Favelas é, desde 2003, uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP), sediada na Maré, no Rio de Janeiro, mas com atuação nacional. Foi fundado e é composto por pesquisadores e profissionais oriundos de espaços populares.

O Observatório tem como missão a elaboração de conceitos, projetos, programas e práticas que contribuam na formulação e na avaliação de políticas públicas voltadas para a superação das desigualdades sociais. Para serem efetivas, tais políticas têm de se pautar pela expansão dos direitos, por uma cidadania plena e pela garantia dos direitos humanos nos espaços populares.

Visite o site do Observatório de Favelas em que se encontram o vídeo aqui postado, além de textos, publicações, fotos e imagens:

www.observatoriodefavelas.org.br

CURSO DE APERFEIÇOAMENTO / ATUALIZAÇÃO: “EDUCAÇÃO INTEGRAL: ESCOLA E CIDADE”
MÓDULO 2 – A Escola e a Cidade: Políticas Públicas e Pedagógicas
UNIDADE 1 – As possibilidades das Cidades Educadoras

Autores:

    Geniana Guimarães Faria (Doutoranda em Educação – FAE/UFMG)
    Juliana Batista (Doutoranda em Educação – FAE/UFMG)
    Michely de Lima Ferreira Vargas (Mestre em Educação – FAE/UFMG)
    Paulo Henrique de Queiroz Nogueira (FAE/UFMG)
    Ricardo Sales (Mestre em Educação Física – EEFFTO/UFMG)
    Shirley Aparecida de Miranda (FAE/UFMG)

Referências bibliográficas:

    BRASIL. Educação integral: texto referência para o debate nacional. - Brasília: Mec, Secad, 2009. 52 p. Disponível on-line em cadfinal_educ_integral.pdf

    CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Trad. Bruno Magne. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

    COLL, C. Educação, escola e comunidade: na busca de um compromisso. In: Comunidade e escola: a integração necessária. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

    Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível on-line em documentos_direitoshumanos.php

    FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

    GADOTTI, M. Autonomia da Escola: princípios e propostas. São Paulo: Cortez, 1997.

    MIRANDA, S. A. de. Diversidade e Ações Afirmativas: combatendo as desigualdades sociais. In: Cadernos da Diversidade. (org.) Keila Deslandes.

    TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Disponível on-line.